Parecia um conto de fadas. Atraído pela promessa de juros mais baixos, o servidor mineiro Carlos Pereira* fez um cartão de crédito consignado. Mas depois que precisou usar o limite de R$ 1,5 mil para uma emergência, não acordou mais do pesadelo.
Todo mês, o banco passou a descontar 10% da dívida (R$ 150) em sua folha de pagamento. O restante, conta Pereira, entrou no rotativo da fatura com juros de 9,7% ao mês. Mesmo após ter pago R$ 2,5 mil ao longo de 17 meses, o saldo devedor ainda era de R$ 1,6 mil.
“Pedi o cancelamento do cartão. O banco aceitou, mas disse que os descontos em folha iriam continuar, gerando assim uma dívida sem fim”, conta o funcionário público. Após recorrer ao Procon e a sites de reclamações contra empresas, Pereira não viu outra saída senão recorrer à Justiça.
Idosos e pessoas de baixa renda são as maiores vítimas do superendividamento gerado por este tipo de cartão. Segundo o Ministério da Previdência, 67% de seus usuários têm acima de 60 anos e 43% recebem até um salário mínimo (R$ 724). Apenas 15% ganham acima de três salários.
Esse segmento movimentou R$ 8,7 milhões somente em abril, de acordo com os últimos dados disponíveis do governo.
A taxa máxima de juros permitida pelo INSS (Instituto Nacional de Seguridade Social) para o cartão consignado é de 3,06% ao mês – enquanto a média dos cartões comuns é de 10,7%, de acordo com a Anefac (Associação Nacional dos Executivos de Finanças, Administração e Contabilidade).
“A Justiça tem entendido que os juros do cartão devem se equiparar aos do empréstimo consignado [que variam de 1% a 2,2%, segundo o Banco Central]”, explica o advogado Enil Henrique de Souza Filho, do escritório Lourenço Advocacia.
Mas conforme o iG apurou, nem todos os bancos respeitam este limite. A atendente de uma agência do BMG informou à reportagem que as taxas do rotativo variam de 3,5% a 3,6%, sem contar o custo efetivo total (CET), que inclui cobranças como IOF (Imposto sobre Operações Financeiras).
O banco Bonsucesso, por sua vez, informou que cobra 4,99% de pensionistas e aposentados que deixarem de pagar o total da fatura. No caso do banco Pan, são praticadas as taxas máximas permitidas pelo INSS (3,06%), já incluído o CET.
Por acaso ou não, são estes mesmos bancos com o maior número de queixas sobre o cartão consignado registradas no site Reclame Aqui. O BMG aparece em primeiro lugar, com 34 reclamações, seguido do Pan, com 28, e do Bonsucesso, com 27. Com menos ocorrências, também aparecem na lista Banco Cruzeiro do Sul, Itaú e Santander.
Por outro lado, o número de reclamações contra os cartões consignados já foi maior. No Procon-SP, as queixas caíram 37% no primeiro semestre deste ano, em relação ao mesmo período de 2013. Instruções normativas do INSS e do BC para enrijecer as regras do cartão podem ter ajudado essa queda.
Para aposentados e pensionistas, o número de parcelas foi limitado a 60, saques em dinheiro foram proibidos e o limite não pode ultrapassar duas vezes o valor do benefício – antes era de três. O teto de 10% da renda que pode ser comprometida (margem consignável) deve estar dentro dos 30% permitidos para o crédito consignado.
Bancos têm liberdade para reduzir o pagamento mínimo
Enquanto o percentual do pagamento mínimo nas faturas dos cartões comuns é fixado em 20%, no cartão consignado, as instituições financeiras criam suas próprias regras, Elas receberam carta branca do BC para determinar este percentual.
Anteriormente, os bancos só descontavam o pagamento mínimo da fatura no benefício se o cliente não conseguisse pagar a dívida. Agora, passaram a debitar todo mês, automaticamente da folha, um percentual das compras no cartão – mesmo que o cliente possa pagar 100% da dívida na fatura.
Alguns bancos trabalham com percentuais bem abaixo dos 20%. O BMG, por exemplo, desconta apenas 3,66%, e o Pan, 5% – correspondente ao pagamento mínimo do cartão. Quanto menor este valor, maior a margem para o endividamento no rotativo, se a fatura não for paga.
Na opinião de Souza Filho, do Lourenço Advocacia, as dívidas do cartão consignado deveriam ser descontadas da conta corrente. “Eles [os bancos] não podem debitar o valor mínimo direto do benefício, isso é irregular”, afirma.
Tribunais têm condenado bancos por abusos
A Justiça tem dado ganho de causa a consumidores que buscam renegociar as condições do cartão consignado. Em Goiânia (GO), o juiz Antônio Cezar Meneses, da 19ª Vara Cível e Ambiental, suspendeu todos os descontos feitos pelo banco Bonsucesso na folha de pagamento sem a autorização expressa dos servidores públicos de Goiás. A ação envolveu cerca de 19 mil funcionários.
O Ministério Público (MP), que pediu a liminar, alegou que a margem consignável do cartão teria chegado a 40% dos salários (o limite é 10%), e que o desconto do valor mínimo da fatura no salário estaria levando o funcionalismo público ao superendividamento.
O mesmo juiz deu decisão favorável ao Sindicato dos Trabalhadores em Educação do Estado de Goiás (Sintego-GO) contra o desconto feito da mesma forma pelos bancos Bonsucesso e BMG.
Em Minas Gerais, o BMG foi condenado pela 11ª câmara Cível do TJ/MG, em julho, por ter oferecido a contratação do cartão consignado por telefone, o que é proibido por lei. O tribunal também determinou que, ao fazer publicidade do produto, o banco exiba advertências aos idosos sobre o risco de superendividamento decorrente do crédito.
Ao iG, o banco afirmou que não faz operações por telefone e vai recorrer da decisão. “O BMG esclarece, ainda, que nunca se furtou em prestar todos os esclarecimentos aos clientes no ato da contratação dos produtos e serviços de crédito consignado e destaca que cumpre com a legislação vigente sempre respeitando os direitos dos consumidores”.
* O nome do servidor foi modificado para preservar sua identidade
Fonte: Ig