Doente. Sem dinheiro. Sem comida. Sem energia elétrica em casa. Sem condições de higiene, convivendo inclusive com animais. Na mais completa miséria e em estado de inanição, sem forças físicas e psicológicas para sair da situação. Esse cenário estarrecedor foi o encontrado por uma assistente social ao resgatar um trabalhador em uma fazenda situada em Muzambinho-MG após uma denúncia feita por um vizinho.
O trabalhador era explorado pelo fazendeiro, em condições análogas à escravidão. Durante os 15 anos que trabalhou para ele, viveu sem ter satisfeitos seus direitos básicos. Quando não pôde mais produzir, foi abandonado à própria sorte. O drama vivido pelo trabalhador é também o retrato de uma triste realidade no Brasil: ainda são inúmeros os casos de trabalhadores reduzidos a condições semelhantes às da escravidão. Essa chaga social insiste em persistir no País mais de 100 anos depois da abolição da escravatura pela Lei Áurea.
No caso, o trabalhador resgatado na fazenda foi socorrido e ajuizou uma reclamação trabalhista. Ele conseguiu obter o reconhecimento do vínculo de emprego com o fazendeiro e também uma indenização no valor de R$10 mil por dano moral. A decisão foi do juiz Cláudio Roberto Carneiro de Castro, que julgou o caso na Vara do Trabalho de Guaxupé. Ele não se convenceu pelas provas de que a relação seria de parceria agrícola, como alegado pelo fazendeiro. Dentre as várias provas produzidas nesse sentido, o julgador constatou que o documento de meação foi feito muito tempo depois do início da prestação de serviços.
O juiz identificou as artimanhas do réu para tentar afastar uma relação de emprego com o reclamante, que é semi-analfabeto. Ele lembrou que o contrato de trabalho é regido pela primazia da realidade, não importando qual a forma aparente que o empregador tenta impingir à relação. No caso, a prova testemunhal trazida pelo trabalhador desmistificou todos os ardis empregados pelo réu.
Uma testemunha relatou que o reclamante nunca vendeu café em seu próprio nome e que o produto era vendido pelo patrão. A versão também foi a apresentada pelo próprio reclamante, que disse que apenas acompanhava o réu nas vendas de café para a Central de Café em Muzambinho. Outra testemunha disse que o fazendeiro não dava parte do dinheiro apurado com a venda para o reclamante. O pagamento a ele era feito por semana, girando em torno de R$25/30,00. Segundo a testemunha, as condições financeiras do trabalhador eram precárias.
“Ora, se realmente existisse parceria agrícola e se o produto das vendas do café fosse partilhado, por óbvio que o reclamante não teria sido encontrado em condições de absoluta miséria e nem necessitaria de cesta básica, quando as vendas do café eram boas”, registrou o juiz na sentença, não tendo dúvidas de que o reclamante apenas emprestava o nome para o réu negociar o café produzido na propriedade. Conforme apurado, o réu precisava fazer negócios em nome de outras pessoas por entender que só assim não perderia seu direito de aposentadoria. “Certamente por ingenuidade e devido a sua pouca leitura, em troca de emprego, moradia e por um certo amparo, o autor aceitou essas condições, assinando uma falsa meação, termo de responsabilidade como produtor rural, emitindo ainda notas de vendas de café em seu nome como se produtor fosse”, destacou.
Nesse contexto, foi reconhecida a relação de emprego entre as partes desde fevereiro de 1998 e declarada a rescisão indireta do contrato de trabalho. O réu foi condenado a cumprir todas as obrigações decorrentes.
Danos morais
A situação de miséria e abandono em que o trabalhador se encontrava ficou fartamente provada no processo, inclusive por fotografias. Ele foi resgatado pela assistente social graças à denúncia de um vizinho, já em estado de inanição, com sérios problemas de saúde e com o pé inchado. Após o resgate foi providenciado tratamento médico, sendo que a psicóloga do hospital para onde ele foi levado suspeitou da doença de Alzheimer e detectou o alcoolismo.
O juiz reconheceu a culpa do reclamado pela situação do reclamante, repudiando o argumento de que ele seria o único e exclusivo responsável pelo seu estado de penúria e miséria humana. “É muito cômodo para o réu escudar sua defesa no alcoolismo do autor, esquecendo-se que por trás do trabalhador que lhe prestou serviços por muitos anos há um ser humano que merece ser tratado com dignidade e respeito”, destacou o magistrado e, com amparo na lei civil e constitucional, condenou o réu ao pagamento de indenização por dano moral no valor de R$10 mil.
Recurso
Acompanhando o voto desembargador Sércio da Silva Peçanha, a 8ª Turma do TRT de Minas negou provimento ao recurso apresentado pelo fazendeiro e manteve a condenação: “O Reclamado agiu culposamente quando utilizou o nome do Reclamante para negociar o café produzido, sem partilhar o produto da venda, e, ainda, ao abandoná-lo à própria sorte na sua propriedade, sem salário, sem alimentos, à beira da morte, com sérios problemas de saúde, sem tomar providência alguma”, destacou o relator no voto. Por entender que houve desrespeito à dignidade da pessoa humana e ao valor social do trabalho (art. 1º, III e IV da CF/88), decidiu confirmar a condenação do reú por danos morais.
Fonte: TRT