Antes de se analisar o atual fenômeno do superendividamento, é imprescindível verificar sua causa: a concessão de crédito, mais precisamente, sob a forma de consignação – financiamento no qual o tomador de crédito autoriza a retirada do pagamento do débito diretamente de sua conta corrente -. Ocorre que, geralmente, o desconto em folha – por oferecer menores taxas de juros, ser concedido até mesmo a quem tem restrições creditícias de modo rápido, fácil e sem consulta às entidades de proteção ao crédito -, é comumente utilizado pelo consumidor para a aquisição de bens e serviços, sejam eles essenciais ou não, bem como pelo consumidor endividado na tentativa de reduzir, paliativamente, o montante de dívidas que possui.
A partir daí que vem a grande armadilha que os bancos que recebem os salários dos aposentados, funcionários públicos, pensionistas, sabendo que a margem consignável está comprometida, oferece empréstimos para que o valor da parcela seja debitado na conta salário, existem casos em que o cliente acaba tendo praticamente todo seu salário confiscado pela instituição financeira.
Caso verídico, a cliente é pensionista do INSS, e em virtude de uma parceria entre esse ente e o Banco, seu benefício é depositado em conta vinculada a este Banco.
O benefício bruto da cliente alça a quantia de R$ 852,37 (oitocentos e cinquenta e dois reais e trinta e sete centavos). Efetuados os devidos descontos, a renda liquida de R$ 743,97 (setecentos e quarenta e três reais e noventa e sete centavos). Segundo o artigo 21, da Lei nº 1.046/1950, não poderá exceder a 30% (trinta por cento) da remuneração liquida os descontos realizados na folha de pagamento, por meio de consignação. Dessa forma, considerando o dispositivo legal acima mencionado, a cliente possui uma margem consignável de R$ 223,19 (duzentos e vinte e três reais e dezenove centavos). Os descontos em folha chegam a R$ 297,29 (duzentos e noventa e sete reais e vinte e nove centavos). Assim, a cliente vem sofrendo descontos superiores ao limite autorizado por lei.
Além disso, os descontos não se limitam aos descontos na própria folha de pagamento! A instituição financeira, valendo-se da situação de gestora do benefício da cliente, promove em sua conta corrente, no ato do depósito de seus vencimentos, o desconto do valor de R$ 429,47 (quatrocentos e vinte e nove reais e quarenta e sete centavos) referentes a empréstimos realizados, com cláusula de pagamento através de débito em conta. Ocorre que com tal atitude os descontos realizados nos vencimentos da cliente chegam a R$ 726,76 (setecentos e vinte e seis reais e setenta e seis centavos) ou seja, 85,26% (oitenta e cinco virgula vinte e seis porcento) de sua renda liquida.
A Instituição financeira, por meio de um contrato de adesão, burla claramente a lei 1046/1950 e efetua descontos em porcentagem maior que a autorizada legalmente.
Preceitua o artigo 21 da lei 1046/1950 que:
Art. 21. A soma das consignações não excederá de 30% (trinta por cento) do vencimento, remuneração, salário, provento, subsídio, pensão, montepio, meio-sôldo, e gratificação adicional por tempo de serviço.
A instituição financeira utiliza-se de uma manobra ardilosa para burlar a legislação vigente e vale-se de um convênio com os órgãos pagadores dos clientes, onde é a responsável pela gestão dos subsídios de seus servidores, para fomentar o endividamento e garantir o recebimento das parcelas mediante um “confisco” direto nos rendimentos do servidor.
O entendimento predominante no TJMG é de que os descontos devem se limitar a 30% (trinta por cento) dos vencimentos do devedor.
Vejamos:
EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE REVISÃO DE CONTRATO – RETENÇÃO DOS SALÁRIOS DA CORRENTISTA – DESCONTO DE PARCELAS DE EMPRÉSTIMOS EM CONTA-SALÁRIO- POSSIBILIDADE – LIMITAÇÃO A 30%. – O limite ao percentual de 30% para a realização de descontos de parcelas de empréstimo em conta-salário deve-se ao fato de constituir o salário verba alimentícia do mutuário, da qual necessita indubitavelmente para sua própria subsistência, fazendo-se legítima, destarte, a aplicação do limite previsto na legislação que regula o desconto diretamente em folha de pagamento à hipótese em tela, de desconto incidente sobre conta-corrente, já que o objetivo da norma é justamente salvaguardar importe mínimo de que possa dispor o correntista para o atendimento de suas necessidades pessoais; – Sentença reformada. (TJMG – Apelação Cível 1.0145.12.039673-7/002, Relator(a): Des.(a) Domingos Coelho , 12ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 01/10/2014, publicação da súmula em 13/10/2014)
EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE REVISÃO DE CONTRATO – RETENÇÃO DOS SALÁRIOS DA CORRENTISTA – DESCONTO DE PARCELAS DE EMPRÉSTIMOS EM CONTA-SALÁRIO- POSSIBILIDADE – LIMITAÇÃO A 30%. – O limite ao percentual de 30% para a realização de descontos de parcelas de empréstimo em conta-salário deve-se ao fato de constituir o salário verba alimentícia do mutuário, da qual necessita indubitavelmente para sua própria subsistência, fazendo-se legítima, destarte, a aplicação do limite previsto na legislação que regula o desconto diretamente em folha de pagamento à hipótese em tela, de desconto incidente sobre conta-corrente, já que o objetivo da norma é justamente salvaguardar importe mínimo de que possa dispor o correntista para o atendimento de suas necessidades pessoais; – Sentença mantida. (TJMG – Apelação Cível 1.0024.12.098374-7/001, Relator(a): Des.(a) Domingos Coelho , 12ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 01/10/2014, publicação da súmula em 13/10/2014)
Uma vez que, a comodidade do débito em conta corrente só subsiste quando não se retira do devedor a condição mínima de sobrevivência, sendo certo que o fato de seu vencimento ser depositado em conta corrente não mitiga a sua natureza salarial.
Tem-se, pois, que sólida jurisprudência tem se posicionado no sentido de que às instituições bancárias não é permitido utilizar todo o salário de seu cliente para a cobertura de débito existente na conta corrente deste, mesmo que, para tanto, haja expressa anuência do titular, exarada no respectivo instrumento de contrato, vez que tal procedimento constitui apropriação indevida de verba salarial, o que, como visto, malfere expressa disposição constitucional, já que não pode a instituição financeira apropriar integralmente os vencimentos depositados, pois atinge os recursos que servem à sobrevivência da autora e colocaria o Banco em posição de credor especialmente privilegiado, sem limitações legais para haver, pelas suas próprias forças, de todo o numerário depositado na conta da cliente.
Concluindo, fica registrado que o total dos descontos não pode ultrapassar o percentual de 30% do valor dos vencimentos líquidos creditados na conta corrente, limite com esteio na jurisprudência majoritária, tem entendido como adequado para esse tipo de negociação.