Simone Plachta conta que recebe telefonemas todos os dias em horários impróprios, inclusive fins de semana, do banco
A crise econômica, que aumenta a inflação e diminui a oferta de emprego — somente em junho foram cortadas mais de 111 mil vagas com carteira assinada, segundo dados divulgados na última sexta-feira pelo Ministério do Trabalho —, tem um outro aspecto devastador sobre o orçamento das famílias: a inadimplência. Com renda menor, muitas não conseguem mais pagar as contas. E quando a dívida é com instituições financeiras, seja empréstimo, cartão de crédito ou mesmo do cheque especial, a situação pode se tornar insustentável e há risco de o consumidor ter bens penhorados pela Justiça para cobrir os débitos. Mesmo sendo grave, a situação do devedor, porém, não implica perda de direitos, explicam especialistas.
Mesmo sendo legítima, a cobrança não pode ser feita de forma a constranger o devedor. O Código de Defesa do Consumidor (CDC) fixa regras e parâmetros para que seja favorecida a negociação entre as partes. No dia a dia, entretanto, a lei é constantemente desrespeitada.
Horários inadequados
Há cerca de três meses, a empresária Simone Plachta passou a fazer parte do grupo de brasileiros que, de acordo com a Serasa Experian e o Serviço SPC Brasil, só aumenta. Um problema familiar levou a correntista do banco Itaú a utilizar o limite do cheque especial e do cartão de crédito. As dívidas superam R$ 15 mil. Sem conseguir pagar o total, ela negociou parte dos débitos e está pagando as parcelas. Mesmo assim, Simone conta que é cobrada diariamente em horários e condições inadequados.
— Ligam às 7h, às 8h, a qualquer hora, até nos finais de semana e feriados. Telefonam para o meu trabalho. E há ainda os constantes envios de mensagens pelo celular. É claro que quero pagar, mas considero isso um constrangimento por parte do banco — diz Simone, que estuda a possibilidade de processar a instituição.
O Itaú informou ao GLOBO, por meio de nota, “que segue as regras e horários previstos na legislação aplicável e na autorregulação da Febraban (Federação Brasileira de Bancos), observando sempre a regra mais restrita.” Ainda de acordo com a instituição, “no caso da cliente, os contatos foram realizados dentro dos horários permitidos.”
— O credor tem todo o direito de cobrar o débito, mas deve observar as regras estabelecidas na lei. No caso de relação de consumo, o artigo 42 do CDC é que estabelece as diretrizes. Entre elas, a de que na cobrança de débitos o consumidor inadimplente não será exposto ao ridículo, nem será submetido a qualquer tipo de constrangimento ou ameaça — destaca Janaína Alvarenga, advogada da Apadic — Associação de Proteção e Assistência à Cidadania e do Consumidor.
Segundo a especialista, o consumidor em débito deve observar qual o valor exato da dívida, considerando juros e correções, uma vez que a lei também o protege em caso de cobrança em valores excessivos:
— O consumidor cobrado em quantia indevida tem direito a receber, valor igual ao dobro do que pagou em excesso, acrescido de correção monetária e juros legais, salvo hipótese de engano justificável — explica a advogada.
Outro aspecto que empresas e instituições costumam desrespeitar ao efetuar cobranças é informar a terceiros que o consumidor está inadimplente. Segundo o CDC, esta é mais uma prática abusiva.
— O credor pode, sim, ligar para o trabalho (do inadimplente), o que não pode é fazer “tortura psicológica”, com ligações insistentes, várias vezes ao dia e diariamente. E nem mesmo dar ciência do débito para terceiros, isto é, falar sobre a dívida com qualquer pessoa que não seja o devedor — diz Janaína.
Há casos que até parecem ficção. A advogada da Apadic conta que, recentemente, foi procurada por uma consumidora com dívidas com uma loja de utilidades domésticas. A mulher queria orientação sobre como proceder, após um funcionário da empresa procurá-la em sua casa para cobrar a dívida:
— O homem ficou coagindo a consumidora a acompanhá-lo até a loja para pagar a dívida. Isso não pode, é constrangimento. A cobrança deve ser pessoal, pode ser por telefone, mas o cobrador não pode nem deixar recado. Muito menos ameaçar, por exemplo, dizer que vai tornar público o débito ou que vai ligar para todos os vizinhos. Isso é coação e a lei proíbe — afirma.
A conduta ilegal pode levar o cobrador a ser punido com pena de três meses a um ano de prisão, além do pagamento de multa, conforme esclarece o advogado José Alfredo Lion:
— É o que está previsto no artigo 71 do CDC. Está sujeito a essas penas quem utilizar, na cobrança de dívidas, de ameaça, coação, constrangimento físico ou moral, afirmações falsas, incorretas ou enganosas ou de qualquer outro procedimento que exponha o consumidor, injustificadamente, ao ridículo ou interfira com seu trabalho, descanso ou lazer — diz o especialista.
Segundo o advogado, os tribunais já consideram como prática abusiva a solicitação por parte de empresas que vão conceder crédito dos números de telefones de parentes ou vizinhos do consumidor que está contratando o empréstimo.
— O credor tem meios legais para receber seu crédito, pode incluir o nome do consumidor em cadastro restritivo de crédito, devendo o consumidor ser notificado previamente pelo banco de dados antes de concluído o registro, para que possa ter a oportunidade de efetuar o pagamento. A lei não determina que o credor notifique a existência de débito, e sim que o banco de dados informe o comando de inclusão ao consumidor — diz a advogada.
Apesar das dificuldades, o consumidor deve buscar uma saída. Uma delas é enfrentar a realidade dos números, sugere Myrian Lund, especialista em Finanças Pessoais da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
— É importante não entrar em desespero, mesmo que esteja sendo cobrado. O primeiro passo é colocar valores no papel: os rendimentos, os pagamentos fixos, como aluguel, contas de água e luz, o quanto deve e a que instituições. A partir daí, é possível identificar condições para negociar com os credores.
Segundo a professora, ao serem pressionadas pelos cobradores, muitas pessoas agem de forma emocional e aceitam qualquer negociação.
— Negociar só vale a pena quando é possível pagar. É importante aproveitar qualquer rendimento extra, como férias, 13º salário e restituição do Imposto de Renda. Outro ponto importante é pedir ajuda à família, expor a realidade.
É permitido
Ir pessoalmente: Ao local onde esteja o devedor
Telefonar: Para o trabalho ou casa ou enviar correspondência
Punir: Com inclusão do nome em cadastros como SPC e Serasa
É proibido
Constranger: Ligar excessivamente, ameaçar
Ridicularizar: Deixar que terceiros saibam da cobrança ou da existência da dívida
Interferir: No trabalho. descanso ou lazer
Fonte: O Globo