A Defensoria Pública de São Paulo foi à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (CIDH) pedir o fim do crime de desacato (previsto no artigo 331 do Código Penal). O órgão requereu, neste mês, medida cautelar para a tutela emergencial de direitos fundamentais em relação à comunicação feita à entidade em 2012 com o mesmo objetivo.
Naquela ocasião, a Defensoria alegou que o Estado brasileiro tinha violado direitos humanos contra um metalúrgico. Flagrado com drogas por um policial militar, ele foi detido e levado à delegacia. Nisso, teria dito ao agente: “policial sem-vergonha, corrupto, ladrão e vagabundo, não ficarei detido para sempre, você vai se ferrar, vai morrer”. Por essa razão, foi denunciado por desacato.
A defesa do operário foi assumida pela Defensoria, que pediu sua absolvição, argumentando que o artigo 331 do CP havia sido derrogado pelo artigo 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), conforme o entendimento da Relatoria para Liberdade de Expressão da CIDH.
Porém, o juiz de primeira instância não concordou com os defensores públicos. Para ele, o crime de desacato não pode ser derrogado por um tratado internacional — como a Convenção Americana de Direitos Humanos —, pois só é possível que outra lei nacional o faça.
A segunda instância também firmou entendimento desfavorável à Defensoria paulista, afirmando que a liberdade de expressão garantida pela norma americana não autoriza ofensas a servidores públicos. Com isso, os juízes condenaram o metalúrgico a sete meses de detenção em regime aberto. Os defensores insistiram no caso até ele chegar ao Supremo Tribunal Federal, mas a corte negou seguimento ao recurso, porque a pena já tinha sido extinta à época.
Devido ao esgotamento das medidas no Brasil, a Defensoria acionou a CIDH, sustentando que a decisão final do Judiciário nacional violou os artigos 7º — que determina que ninguém pode ser preso por causa de algo não previsto na Constituição de seu país — e 13 — que trata da liberdade de expressão — do Pacto de San José da Costa Rica.
No entanto, a entidade até hoje não se manifestou sobre o assunto. Os defensores paulistas então decidiram reforçar o pedido. Nessa segunda tentativa, alegaram que a inércia da CIDH vem permitindo que as polícias brasileiras usem o crime de desacato para sufocar manifestações populares e ocultar arbitrariedades dos agentes, como tortura.
Como exemplo dessas ilegalidades, a Defensoria citou a conduta da Polícia Militar de São Paulo na passeata de 9 de janeiro contra o aumento das passagens de ônibus, metrô e trens na capital paulista. Na ocasião, os agentes reprimiram o protesto com balas de borracha e bombas de gás lacrimogênio. Outra estratégia dos policiais foi prender aleatoriamente manifestantes (38, no total) sob a alegação de desacato. Mas mesmo filmando o ato, a PM não conseguiu provar as ofensas a seus funcionários.
Pelo contrário: os detidos disseram que foram agredidos pelos PMs. De acordo com o defensor público Bruno Shimizu, um dos signatários do pedido à CIDH, “vários manifestantes sofreram com a violência dos policiais, como um que levou um disparo de bala de borracha nos seus órgãos genitais, e outro que tomou uma facada nas costas. Ou seja, a imputação de desacato a eles serviu para legitimar a tortura e desviar o foco de suas arbitrariedades”.
E quando os defensores denunciaram as práticas ao delegado, ele ouviu as negativas dos PMs e, baseado apenas na palavra deles, lavrou termos circunstanciados contra os manifestantes, o que induz à persecução penal e pode impor-lhes penas restritivas de direitos.
Com isso, a Defensoria pediu a concessão de medida cautelar para que a CIDH ordene que o Brasil identifique todas as pessoas que estejam sendo investigadas, respondendo a processo ou cumprindo pena por desacato, e suspenda os esses procedimentos ou sanções. Além disso, os defensores paulistas requereram que seja determinada a suspensão da aplicabilidade ao artigo 331 do CP.
Legitimação de desigualdades
Segundo Shimizu, o Estado brasileiro está sendo omisso ao deixar de excluir o desacato de seu ordenamento jurídico.
“Outros Estados já foram condenados por não se adequarem ao Pacto de San José da Costa Rica. O próprio STF já reconheceu que o tratado tem hierarquia superior às leis ordinárias — como o CP — quando declarou ilegal a prisão de depositário infiel, que era prevista no Código de Processo Civil. Então, não há por que manter esse crime vigente”, explicou.
Na opinião do defensor, a manutenção do crime de desacato se explica pela formação histórica do Brasil: “Nosso passado de escravidão e ditaduras torna difícil implantar valores democráticos no país, tanto que a nossa democracia é apenas formal”. E isso, continua, formou a ideia de que os agentes públicos não se prestam a servir a população e estão acima da lei, não podendo ser desrespeitados pelos cidadãos.
O reflexo disso está, de acordo com Shimizu, nos casos de abuso de poder de juízes e policiais, que são frequentemente divulgados pela imprensa.
Impacto na advocacia
O pedido da Defensoria pelo fim do desacato foi bem recebido entre os advogados. Para o criminalista Fábio Tofic Simantob, uma eventual derrogação do delito será “um freio a menos na liberdade de expressão e nas atividades que estão ligadas à denúncia de abusos do poder, como o jornalismo e a advocacia”.
Na opinião dele, isso “cortaria um pouco o autoritarismo dos juízes”, que muitas vezes dão voz de prisão a advogados que discordam de suas decisões. Simantob disse que as vítimas de ofensas já são protegidas pelos crimes contra a honra — injúria, calúnia e difamação —, que são questões privadas e dependem do ofendido mover ação para buscar reparação. Assim, não se justifica a existência de uma infração de ação pública incondicionada que um promotor pode iniciar sem o consentimento do servidor.
O também especialista em Direito Penal Paulo Sérgio Leite Fernandes elogiou a iniciativa, já que “qualquer coisa hoje é desacato, especialmente para alguns juízes de primeira instância que se entronizam no poder”.
“Os advogados são hoje uma classe amedrontada [pelos abusos dos juízes]. Especialmente os mais jovens, que não foram educados para a resistência. Assim, isso [o fim do desacato] fará com que eles deixem de compactuar com abusos de autoridades”, afirmou Leite Fernandes.
Embora ressalvando que as principais vítimas do desacato são os pobres, que sofrem com os excessos da polícia, e não os advogados, Shimizu acredita que a extinção do crime “pode democratizar a relação judicial, colocando o juiz em posição mais próxima do jurisdicionado”.
Já o presidente da Comissão Nacional de Defesa das Prerrogativas e Valorização da Advocacia do Conselho Federal da OAB, Leonardo Accioly da Silva, declarou “ver com simpatia” o requerimento da defensoria paulista. Entretanto, ele defende a manutenção do desacato no Código Penal, desde que sejam criadas facilidades para os cidadãos denunciarem práticas de abuso de autoridade. Segundo o advogado, isso geraria um equilíbrio entre os dois delitos.
Mesmo assim, ele sustenta que o desacato não deveria se aplicar à atividade dos advogados, afirmando que ele é “um elemento inibidor da relação horizontal do Estado com a advocacia”. Para Silva, os excessos deveriam ser punidos pelo Código de Ética da OAB.
Em sua redação original, o Estatuto da Advocacia (Lei 8.906/1994) estabelecia no artigo 7º, parágrafo 2º, que “o advogado tem imunidade profissional, não constituindo injúria, difamação ou desacato puníveis qualquer manifestação de sua parte, no exercício de sua atividade, em juízo ou fora dele, sem prejuízo das sanções disciplinares perante a OAB, pelos excessos que cometer”.
O dispositivo foi questionado pela Associação dos Magistrados Brasileiros e pela Procuradoria Geral da República junto ao STF na Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.127-8. O Supremo concordou com as entidades, e declarou inconstitucional a expressão “ou desacato” em 2006.
Fonte: Conjur